
Uma Análise Teológica do "Dom de Línguas": 5 Critérios para o Discernimento
Introdução: A Necessidade de Julgar Todas as Coisas
O apóstolo Paulo instrui a igreja a "julgar todas as coisas e reter o que é bom" (1 Tessalonicenses 5:21). Este princípio de discernimento é especialmente crucial quando se trata de manifestações espirituais. O fenômeno contemporâneo conhecido como "Dom de Línguas" (glossolalia) é um dos tópicos mais controversos e divisivos na igreja moderna.
Diante disso, é nosso dever, como cristãos que prezam pela sã doutrina, analisar essa prática à luz das Escrituras e da história da Igreja. Propomos aqui cinco exames ou critérios para avaliar a legitimidade do "dom de línguas" praticado hoje.
1. O Exame Histórico: O Silêncio de 18 Séculos
Um dos argumentos mais fortes contra a continuidade deste dom é o seu virtual desaparecimento na história da Igreja após a era apostólica. Com o fechamento do cânon do Novo Testamento, a manifestação de línguas como sinal cessou.
Por mais de 1.800 anos, não há registros consistentes de sua prática. Grandes pilares da fé, como os Pais da Igreja (Agostinho, Jerônimo), os Reformadores (Lutero, Calvino) e os grandes pregadores e evangelistas dos séculos seguintes (Spurgeon, Wesley, Moody), não apenas não exerceram tal dom, como muitos, a exemplo de Agostinho, o consideraram um sinal temporário para a fundação da Igreja. A sua reaparição massiva apenas no século XIX, notadamente com o movimento da Rua Azusa nos EUA, levanta sérias questões sobre sua autenticidade histórica e bíblica.
2. O Exame Funcional: O Propósito Original dos Dons
Os dons espirituais foram concedidos com um propósito claro: a edificação da Igreja (1 Coríntios 14:12). Dons de sinal, como o de línguas, tiveram uma função específica e fundacional: autenticar a mensagem dos apóstolos e capacitar a rápida expansão do Evangelho em um mundo multilíngue, como visto em Pentecostes (Atos 2), onde as línguas faladas eram idiomas humanos compreensíveis.
Qual é a função do "dom de línguas" hoje? Em vez de edificar, frequentemente ele serve para:
- Criar divisões entre os que supostamente "têm" o dom e os que não têm.
- Promover uma falsa medida de espiritualidade, como se fosse uma evidência superior do batismo no Espírito.
- Gerar desordem e confusão no culto público, algo que o apóstolo Paulo condenou veementemente.
A função bíblica era a clareza para a edificação; a prática moderna muitas vezes resulta em subjetividade e caos.
3. O Exame da Necessidade: A Suficiência das Escrituras
A prática pentecostal/carismática geralmente segue um processo: uma pessoa fala em "línguas", e outra a interpreta, trazendo uma suposta mensagem de Deus para a igreja. Aqui, nos deparamos com um dilema lógico e teológico:
- Se a mensagem interpretada já está na Bíblia, ela é redundante e desnecessária.
- Se a mensagem não está na Bíblia, ela é perigosa e falsa, pois se coloca como uma nova revelação, minando a doutrina da suficiência das Escrituras (Sola Scriptura).
A Bíblia afirma ser a Palavra de Deus completa e suficiente para nos tornar "perfeitos e perfeitamente habilitados para toda boa obra" (2 Timóteo 3:16-17). Afirmar que ainda precisamos de novas mensagens reveladas através de línguas é, na prática, declarar que a Bíblia não é suficiente.
4. O Exame do Perigo: O Risco da Falsificação
A natureza extática e não verificável da glossolalia moderna a torna um terreno fértil para a falsificação e o engano. É extremamente fácil imitar sons e balbucios sem sentido, apelando para o emocionalismo em detrimento da verdade. Falsos profetas podem se aproveitar da ingenuidade e do desejo sincero das pessoas por uma experiência com Deus.
O povo de Deus perece por falta de conhecimento (Oséias 4:6), deixando-se levar por ventos de doutrinas que priorizam o êxtase momentâneo em vez do testemunho de uma vida transformada e do estudo sério da Palavra.
5. O Exame da Posse: Ordem e Autocontrole
A palavra "dom" (charisma) significa uma dádiva da graça. Aquele que recebe um dom do Espírito Santo tem posse sobre ele, ou seja, pode controlá-lo. Paulo deixa isso claro ao estabelecer regras rígidas para o uso de línguas em Corinto:
"Se alguém falar em outra língua, que não sejam mais do que dois ou quando muito três, e isto sucessivamente, e que haja quem interprete. Mas, se não houver intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus." (1 Coríntios 14:27-28)
Paulo exige ordem, turnos e a presença obrigatória de um intérprete. Isso prova que o dom estava sob o controle de quem o possuía. Por que, então, vemos hoje pessoas interrompendo o louvor ou a pregação com manifestações incontroláveis e sem interpretação? Onde está a posse do dom? Onde está a ordem que Paulo exigiu, afirmando que "Deus não é de confusão, e sim de paz" (1 Co 14:33)?
O próprio apóstolo conclui: "prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua" (1 Coríntios 14:19).
Conclusão
A questão fundamental não é buscar experiências subjetivas, mas saber se estamos verdadeiramente interessados na edificação da Igreja. A análise histórica, funcional, teológica e bíblica do "dom de línguas" moderno revela que ele falha em alinhar-se com os padrões estabelecidos nas Escrituras. Em vez de unir e edificar com clareza, muitas vezes promove confusão e um falso senso de espiritualidade.
Que possamos, com sabedoria e coragem, valorizar a clara e suficiente Palavra de Deus acima de qualquer experiência que busque ofuscá-la.