Categoria: Artigos
Data: 21/10/2025
A Verdadeira Maria da Bíblia: Além dos Dogmas

Introdução: Entre a Admiração e a Idolatria
A discussão sobre Maria raramente é apenas sobre ela. Historicamente, a mariologia tem sido um campo onde se travam batalhas sobre doutrinas centrais como a natureza de Cristo (Cristologia), a salvação (Soteriologia) e a autoridade das Escrituras (Sola Scriptura). A rejeição protestante à mediação de Maria, por exemplo, não é um ataque à sua pessoa, mas uma defesa da suficiência de Cristo como único mediador (Solus Christus).

O Retrato de Maria nas Sagradas Escrituras: A Serva Agraciada
Para uma teologia que se fundamenta no princípio Sola Scriptura, a análise deve começar e terminar com o testemunho da Palavra de Deus.

1. A Anunciação: Fé, Submissão e Graça (Lucas 1:26-38)
No encontro com o anjo Gabriel, a saudação "Salve, agraciada" (Lc 1:28) é fundamental. O termo grego, kecharitōmenē, não denota uma fonte de graça, mas o status de alguém que foi objeto passivo do favor imerecido de Deus. Ela é "aquela que recebeu graça", não aquela que a concede. A graça não se origina nela, mas é concedida a ela.

Sua resposta define seu caráter: "Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1:38). Esta é uma declaração de submissão piedosa à vontade soberana de Deus.

2. O Cântico de uma Pecadora Salva (Lucas 1:46-55)
O cântico de Maria é inteiramente focado em Deus. Suas primeiras palavras são a chave para sua autopercepção: "A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador" (Lc 1:46-47).

Ao chamar Deus de seu "Salvador", Maria se posiciona, inequivocamente, entre aqueles que necessitam de salvação. Ela se reconhece como uma pecadora que, como todos os descendentes de Adão, depende da graça redentora. Este versículo, por si só, representa um ataque direto à doutrina da Imaculada Conceição, que não tem respaldo bíblico. Maria é o instrumento humilde, não a fonte da bênção.

3. Maria no Ministério de Jesus: Discípula e Mãe
As Bodas de Caná (João 2:1-11): A instrução de Maria aos servos — "Fazei tudo quanto ele vos disser" (Jo 2:5) — é profundamente significativa. Ela não se apresenta como intercessora, mas aponta diretamente para a autoridade e suficiência de Cristo. A resposta de Jesus, "Mulher, que tenho eu contigo?" (Jo 2:4), embora não seja rude, estabelece uma clara distinção entre sua relação familiar e sua missão messiânica.

Aos Pés da Cruz (João 19:25-27): Ali, Jesus confia o cuidado de sua mãe ao apóstolo João. A teologia reformada interpreta este ato primariamente como um ato de piedade filial de um filho que cumpre seu dever para com sua mãe. A razão pela qual Jesus a confia a João, e não a seus próprios irmãos, é que, naquele momento, seus irmãos ainda não criam nele (cf. João 7:5).

4. Mãe de uma Família: Os Irmãos de Jesus
Embora a tradição posterior tenha desenvolvido a doutrina da virgindade perpétua de Maria, os relatos dos Evangelhos apresentam um quadro diferente, sugerindo que, após o nascimento virginal de Jesus, Maria e José tiveram uma vida conjugal normal e outros filhos.

As Escrituras mencionam os irmãos de Jesus de forma direta e natural. Em Nazaré, o povo questionava: "Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E não estão aqui conosco suas irmãs?" (Marcos 6:3; cf. Mateus 13:55-56). O texto não apenas cita "irmãos", mas os nomeia, além de mencionar a existência de "irmãs", indicando uma família conhecida na comunidade. Esses mesmos "irmãos" são mencionados em outras passagens, como em João 7:5 e Atos 1:14.

Além disso, o Evangelho de Mateus descreve o início do casamento de Maria e José de forma clara: José "...a recebeu como esposa. Contudo, não teve relações com ela até que deu à luz o filho" (Mateus 1:24-25). A expressão "até que" (heōs hou em grego), em sua leitura mais natural, implica que a abstenção de relações conjugais tinha um propósito específico — garantir a concepção virginal de Jesus — e que, após o cumprimento desse propósito, o casamento seguiu seu curso normal. Isso não diminui Maria, mas, ao contrário, honra a instituição do casamento criada por Deus. A ideia de que a virgindade seria um estado espiritualmente superior é um conceito ascético posterior, não um ensinamento bíblico sobre o matrimônio. A leitura direta das Escrituras aponta para uma conclusão clara: Maria, após cumprir seu papel único no nascimento do Salvador, viveu a plenitude de sua vocação como esposa de José e mãe de outros filhos.

5. A Igreja Primitiva: Perseverando em Oração (Atos 1:14)
A última menção a Maria nas Escrituras é, talvez, a mais reveladora: "Todos estes perseveravam unanimemente em oração, com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele". Sua posição é notável: ela não está acima do grupo, recebendo orações. Ela está entre eles, como parte da comunidade de crentes, unida no mesmo ato de súplica e dependência. Após este versículo, Maria desaparece da narrativa bíblica. Este "silêncio apostólico" é um poderoso argumento de que a veneração a ela não fazia parte da fé apostólica original.

6. O Silêncio Sobre sua Morte e a Doutrina da Assunção
O completo silêncio da Bíblia sobre o fim da vida de Maria é teologicamente revelador. Como uma criatura humana, filha de Adão, ela estava sujeita ao caminho de todos os mortais: a morte. Se ela tivesse sido "assunta aos céus" corporalmente, um evento tão extraordinário e sem precedentes quanto as ascensões de Enoque e Elias, seria de se esperar que um fato de tamanha importância ficasse indelevelmente registrado nas Escrituras.

A doutrina da Assunção corporal é uma tradição tardia, definida como dogma apenas em 1950, e sem base bíblica. Do ponto de vista do princípio Sola Scriptura, a ausência de um mandato ou registro bíblico invalida a doutrina como um artigo de fé. A conclusão mais lógica e fiel ao texto sagrado é que Maria, a fiel serva do Senhor, morreu como qualquer outra pessoa, confirmando sua plena humanidade e sua solidariedade com todos os crentes que aguardam a ressurreição. Sua glória não reside em uma suposta exceção à mortalidade, mas na fé perseverante que demonstrou ao longo de toda a sua vida terrena.

7. A Proibição da Adoração: Idolatria e a Suficiência de Cristo
A perspectiva protestante, fundamentada no Sola Scriptura, é inflexível quanto ao objeto de adoração. O primeiro e segundo mandamentos (Êxodo 20:3-5) proíbem categoricamente a adoração de qualquer ser ou imagem que não seja o único Deus triúno. Dirigir orações, petições ou cânticos de louvor a qualquer criatura, por mais exaltada que seja, constitui o pecado da idolatria.

A Bíblia ensina que Maria, como todos os santos que partiram, está morta e aguardando a ressurreição (1 Tessalonicenses 4:13-14). Ela não é onisciente para ouvir milhões de orações simultâneas, nem onipresente para atender aos fiéis em diferentes lugares, atributos que pertencem somente a Deus. A tentativa de comunicação com os mortos (necromancia) é, aliás, explicitamente condenada nas Escrituras (Deuteronômio 18:10-11).

Portanto, na visão reformada, Maria não pode fazer nada pelos fiéis, pois ela está morta e não possui poder de mediação. A honra devida a ela é a de reconhecimento e imitação de sua fé, mas a adoração e a oração são prerrogativas exclusivas de Deus, pois somente Ele é o ouvinte e o respondedor de orações.

8. A Perspectiva da Reforma: Glória Somente a Cristo
Contrariamente à caricatura popular, os reformadores do século XVI não buscavam apagar a memória de Maria, mas reavaliar seu papel através de uma lente rigorosamente bíblica.

A linha divisória inegociável para todos os reformadores foi a rejeição de Maria como mediadora ou intercessora. Esta não era uma questão secundária, mas o coração do evangelho. A Escritura é enfática: "Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem" (1 Timóteo 2:5). A palavra "um" (eis em grego) é exclusiva. A mediação de Cristo é singular e perfeitamente suficiente, não necessitando de assistentes. Atribuir a Maria um papel de mediação lança uma sombra sobre a suficiência de Cristo e desvia a glória que pertence somente a Ele (Soli Deo Gloria).

Conclusão
A análise bíblica e histórica converge para um retrato claro de Maria. Ela é, sem dúvida, "bem-aventurada entre as mulheres" (Lc 1:42), uma mulher extraordinária escolhida por Deus para um papel único. Sua fé humilde, sua submissão corajosa e seu coração que engrandecia o Senhor são exemplos para a Igreja em todas as eras.

Contudo, as Escrituras a apresentam como uma criatura, uma discípula e uma pecadora que se alegrou em "Deus, meu Salvador". Em cada momento, ela aponta para longe de si mesma e em direção a seu Filho. Portanto, a maneira correta e bíblica de honrar Maria não é dirigir-lhe orações ou atribuir-lhe títulos que pertencem somente a Cristo. 

A verdadeira honra a Maria reside na imitação de sua fé. A perspectiva reformada não busca diminuí-la, mas garantir que nada nem ninguém — nem mesmo a mais abençoada das mulheres — obscureça a glória preeminente e a total suficiência de Jesus Cristo.


Autor: Presbítero Luciano Leite   |   Visualizações: 57 pessoas
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